Algumas tristes histórias de um casamento que não deveria mais acontecer neste mundo

Algumas tristes histórias de um casamento que não deveria mais acontecer neste mundo

No hemisfério norte, o Dia dos Namorados é comemorado neste 14 de fevereiro. Muitos escolhem a data para ficar noivos ou se casarem. Mas o casamento antes dos 18 anos é uma história de horror para milhões de meninas. Muitas são forçadas a abandonar os estudos, ficam expostas à violência e são obrigadas à maternidade antes que estejam prontas física e emocionalmente. O casamento infantil é uma violação dos direitos humanos e, geralmente, afeta as meninas mais vulneráveis e marginalizadas.

Produtividade

Neste Dia dos Namorados, assim como nos anteriores, o Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), reforça sua campanha pelo fim do casamento infantil. Segundo a agência da ONU, a prática perpetua o ciclo de pobreza por gerações e tem efeitos calamitosos para as comunidades onde existe. Acabar com o casamento infantil é permitir que as meninas estudem, adiem a maternidade e possam cumprir seu potencial na vida. O fim da prática também deve gerar bilhões de dólares em produtividade, uma vez que essas meninas estariam formadas para o mercado de trabalho, e para seu papel na sociedade como mulheres independentes.

Veja a seguir sete pontos e algumas propostas para ajudar a erradicar o casamento infantil de uma vez por todas.

1. O casamento infantil é comum e ocorre em qualquer lugar do mundo  

Atualmente, 650 milhões de meninas e mulheres no mundo casaram-se ou entraram em união informal marital antes de completar 18 anos. O casamento infantil acontece quando um dos cônjuges está abaixo de 18 anos (ou os dois). De acordo com as estatísticas, 19% de todas as mulheres entre 20 e 24 anos casaram-se ou passaram a viver com um parceiro antes dos 18 anos. E, ainda que o casamento de crianças seja mais prevalente em países de baixa e média rendas, nenhuma nação é imune ao problema.

Nem todas as uniões infantis resultam de decisões de pais ou guardiões do menor. Existem adolescentes que decidem se casar para exercer sua independência, escapar de dificuldades incluindo pobreza, violência familiar ou porque não podem fazer sexo fora do casamento.

Embora não esteja legalmente casada, Gabriela, de 16 anos, vive em união informal com um parceiro de 36 no Brasil. Ela conta que decidiu viver com ele porque seu padrasto não a queria na mesma casa. Gabriela continuou na escola, o que não é comum em casos de noivas menores. Ela diz que o companheiro é um pouco ciumento e que isso tem afetado a relação dela com a família e com os amigos. Ela lembra que, quando era solteira, podia fazer o que queria, mas que agora precisa respeitar o parceiro.

2. Existe avanço contra a prática, mas ainda não é suficiente para acabar com ela

A boa notícia é que, de uns 25 anos para cá, há cada vez menos casamentos infantis em todo o mundo, na maioria das regiões. Na última década, algumas áreas com alta prevalência tiveram um avanço acelerado. A má notícia é que, a não ser que esses esforços avancem, a queda no número de casos não será suficiente para acompanhar o crescimento da população.

O abismo na prevalência entre os lares ricos e pobres tem se alargado na maior parte do mundo. E a Covid-19, que atrasou muitos esforços para erradicar a prática, deve levar a mais 13 milhões de casamentos infantis entre 2020 e 2030, uniões que não ocorreriam se não houvesse a pandemia.

Serviços de proteção à criança, polícia, hospitais e linhas telefônicas de apoio informam um recorde do impacto da doença sobre o casamento infantil. Em Bangladesh, por exemplo, houve um aumento de 400% no número de ligações reportando uniões desse tipo entre abril e junho de 2020. Em abril do ano passado, a linha de apoio recebeu 450 chamadas, 128 a mais que no mês anterior. Uma linha semelhante na Índia cresceu 50% e, graças ao trabalho de assistentes sociais no país, pelo menos 898 casamentos infantis foram evitados durante a pandemia.

3. Casamentos infantis aumentam em situações de emergências humanitárias

Conflito, deslocamentos, desastres naturais e mudança climática agravam os fatores que levam ao casamento infantil, destruindo subsistências, sistemas de educação e aumentando os riscos de violência sexual. Além disso, a situação eleva receios com relação à segurança das meninas e a casos de honra de família.

Nessas situações de fragilidade, a incidência de casamento infantil quase dobra em comparação com a média mundial, em épocas sem crises.

E casamentos nesses contextos também podem ter um significado diferente.

Por exemplo, as transformações nas estruturas familiares e de sistemas de apoio entre refugiados sírios levaram à erosão das normas tradicionais e a restrições à medida que eles passaram a integrar comunidades anfitriãs mais liberais.

As famílias também tendiam a manter as meninas na escola e a permitir que elas trabalhassem. Essas mudanças levaram a transformações em práticas tradicionais de casamento, incluindo um aumento no número de avôs e avós devido a uniões fora da família em comparação com as costumeiras uniões entre primos.

4. Não é caro acabar com o casamento infantil, pelo contrário

Em novembro de 2019, o Unfpa divulgou um estudo em parceria com as Universidades Johns Hopkins, Victoria, Washington e Avenir Health sobre quanto custaria para erradicar o casamento infantil em 68 países que somam 90% dos casos globais. Para pôr fim à prática entre 2020 e 2030, seria preciso investir US$ 35 bilhões. O relatório diz que o custo para evitar o casamento de crianças é US$ 600, o mesmo valor cobrado por um par de tênis de luxo. Os US$ 35 bilhões em intervenções educativas, iniciativas de autonomia das meninas ou empoderamento, treinamentos de habilidades para a vida e programas que mudem normas sociais ajudariam a evitar 58 milhões de casos de casamento infantil.

Além disso, as meninas que são salvas da prática podem dar uma contribuição mais produtiva aos lares e a suas comunidades com o tempo.

5. O casamento infantil é banido em quase todos os países

Dois dos acordos de direitos humanos mais endossados no mundo são a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (Cedaw). Ambos proíbem o casamento infantil. Ambos foram firmados ou ratificados por quase todos os países.

Em todo o mundo, leis locais e nacionais dão margem a diferentes interpretações desse princípio. Muitas nações permitem o casamento infantil desde que seja autorizado pelos pais ou por costumes religiosos, por exemplo. Muitas uniões de crianças não são legalmente registradas. Até em locais onde o casamento infantil é ilegal, a aplicação da lei não é seguida ao pé da letra.

Nas Filipinas, Mimah foi casada pelo tio aos 17 anos, mas pouco mais de um ano depois, ela queria se separar. Agora ela atua como conselheira de outras mulheres jovens sobre os direitos delas num espaço seguro para as mulheres. Ela conta ter percebido que tinha o poder de transformar experiências negativas numa ferramenta para ajudar outras mulheres. O país recentemente aprovou uma lei proibindo o casamento infantil e ordenando que as crianças aprendam sobre os efeitos da prática.

Já na Eritreia, a idade legal para o casamento é 18 anos, mas isso não evita que as famílias desrespeitem a lei. Para evitar o casamento com um homem três vezes mais velho que ela, a ex-professora primária Fatma Hamid fugiu para terminar os estudos e acabou se formando em biologia na universidade.

Ainda que a Guiné-Bissau tenha assinado as Convenções da Criança e a Cedaw, e o Protocolo de Maputo, as crianças continuam se casando com autorização dos pais, de um guardião ou de um tribunal. Quando os pais tentaram casá-la aos 14 anos, em 2008, Ana Kabi andou mais de 20 km a pé para chegar a uma igreja evangélica conhecida como um porto seguro para as meninas que fogem da prática. Muitos pais tentam resgatar suas filhas com o emprego de armas de fogo.

O pastor da igreja, Abdu Cassamá, diz que a desculpa dos pais para deixar as crianças se casarem tem a ver com aspectos econômicos e culturais, além de crenças ancestrais.

Para o Unfpa, apesar dos desafios, há sinais de melhora. Nos últimos três anos, as Filipinas, a República Dominicana e seis estados americanos proibiram a prática. A Indonésia se comprometeu a erradicar o casamento de crianças e o Parlamento de Moçambique aprovou uma legislação banindo a violação. Já Inglaterra e País de Gales fizeram esforços para estabelecer a idade de 18 anos como a idade mínima para o casamento.

6. Casamento infantil e gravidez na adolescência estão perigosamente ligados

O casamento infantil quase sempre precede a gravidez na adolescência. Em países em desenvolvimento, as meninas que são casadas são a maioria das que dão à luz. Essas gravidezes precoces representam riscos sérios a meninas cujos corpos ainda não estão prontos para a maternidade. Em todo o mundo, complicações da gestação e nascimento de crianças são a principal causa de morte de meninas entre 15 e 19 anos.

Após enfrentar um parto longo, Beatriz Sebastião teve uma fistula, uma lesão traumática de um parto, que foi reparada por cirurgias apenas seis anos depois. Ela ficou três dias em trabalho de parto em casa até conseguir chegar a um hospital. Tudo isso quando tinha apenas 15 anos.

E os ferimentos também podem ser impostos. Ghada tinha 12 anos quando deu à luz sua primeira filha no Iêmen. Um ano depois, o marido dela queria um menino e puniu Ghada abusando dela física e emocionalmente. O filho veio, mas na terceira gravidez, aos 15, ela tentou se matar. Ajudada pelo Unfpa, ela deixou o marido e aos 16 anos com três filhos está tentando reconstruir a vida.

7. Empoderar as meninas é vital para acabar com o casamento infantil

Muitas mudanças são necessárias para acabar com o casamento infantil incluindo o fortalecimento das leis contra a prática, avançando com a igualdade de gênero e assegurando os direitos das meninas.

Mas muitas jovens também devem ter autonomia para conhecer e reclamar seus direitos. Isso significa que devem ter acesso a informações corretas sobre saúde sexual e reprodutiva, oportunidades de educação e habilidades para desenvolvimento e participação na vida civil. Com conhecimento muitas podem advogar por esses direitos e convencer famílias a cancelar ou postergar noivados e casamentos.

O Programa do Unfpa e do Unicef para Acelerar Ação para Erradicar o Casamento Infantil atua em 12 países com alta prevalência de casos. Entre 2016 e 2019, 7,2 milhões de meninas afetadas e mais de 30 milhões de pessoas foram alcançadas pelo programa.

Fonte – Versão adaptada do guia original lançado em 7 de fevereiro pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa). Imagem em destaque: adolescente e casamento infantil – crédito Eskinder Debebe – ONU

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