
O que a morte violenta de um patriarca revela sobre os ciclos de abuso que uma família insiste em calar?
Enquanto uma onça arrasta o corpo de Zé Maria para as profundezas da mata, sua família se despedaça em segredos. Na superfície, a cidade chora a perda de um “homem de bem”, mas, entre as paredes da casa enlutada, Rute e os filhos Alan, Alex e Betina respiram o alívio amargo de enterrar um tirano. Santo de casa, de Stefano Volp, não é apenas um romance sobre luto: é um corte profundo nas entranhas do patriarcado, expondo como a violência doméstica, o machismo e a dominação masculina moldam corpos e almas.
Em capítulos que alternam vozes e memórias, os três irmãos revisitam a infância marcada por surras, humilhações e a cumplicidade silenciosa de uma sociedade que naturaliza a opressão. Alan, o filho mais velho, carrega o fardo de repetir os gestos brutais do pai. Alex, dividido entre o amor filial e a revolta, questiona as amarras da masculinidade negra. Betina, única mulher, enfrenta o fantasma da mãe subjugada enquanto trama sua própria libertação. Entre eles, Rute — agora viúva — descobre que o silêncio foi sua única arma por décadas.
Stefano Volp entrelaça a crueza da Baixada Fluminense (cenário de histórias reais que inspiraram a trama) com uma narrativa fragmentada, quase poética, para desmontar a falácia do “homem provedor”. Aqui, a violência não é acidente: é herança. O patriarca morto pela onça torna-se metáfora de um sistema que devora até seus próprios filhos homens, condenados a reproduzir o mesmo horror que os sufoca.
“Escrevi este livro para que as paredes das casas gritem”, diz Stefano Volp. E elas gritam: nas cicatrizes de Betina, no ódio mudo de Alan, nos versos clandestinos de Alex. Santo de casa não oferece redenção — apenas a verdade crua de que, às vezes, é preciso uma tragédia na floresta para desenterrar os monstros que habitam nossa sala de estar.