
Broches de flores feitos com arame. Foto Crédito: Agência PáginaUm de Notícias
Na Rua Helvétia, até o vento carregava segredos. Rosa sabia disso desde os 12 anos, quando vira o pai ser arrastado para um carro sem placa, os sapatos dele riscando o asfalto como gritos mudos. Os “Irmãos” não precisavam de algemas: bastava uma foto da filha, uma ameaça sussurrada, um relógio parado marcando a hora errada. Agora, aos 28, Rosa vendia esses mesmos relógios em uma barraca encostada no muro de um antigo armazém. “Horas extras para quem precisa fugir”, dizia aos clientes, enquanto escondia passaportes falsos sob um pano vermelho manchado de óleo. Seu único luxo era um broche de arame farpado em forma de flor, deixado por uma mulher que desaparecera levando consigo apenas um nome falso e um filho nos braços.
Tudo mudou quando Vinicius chegou. Alto, terno cinza impecável, ele cheirava a bebida cara e mentiras. Parou diante da barraca de Rosa e fixou os olhos em um relógio de ouro falsificado.
— Quinhentos — disse Rosa, antes que ele abrisse a boca.
Ele riu, um som seco, e deslizou uma foto pelo balcão rachado. Era Renata, irmã de Rosa, carregando uma sacola de ferramentas roubadas.
— Faça por duzentos, ou conto aos “Irmãos” onde ela esconde as facas.
Rosa não pestanejou. Aceitou, mas naquela noite, enquanto falsificava o passaporte, costurou um microchip dentro do forro. Presente de Seu Nivaldo, o velho das eletrônicas, que consertava rádios e guardava histórias em gavetas trancadas. “Se esse aí é dos “Irmãos”, por que precisa fugir?”, Nivaldo perguntara. Ela não respondeu. Na Helvétia, perguntas eram armadilhas.
Na entrega, Vinicius deixou cair um broche igual ao dela. Rosa reconheceu o símbolo: as mulheres do fluxo os usavam escondidos, uma marca de quem sobrevivera a maridos, “Irmãos” ou polícia.
— Presente de uma admiradora — ele sorriu, ajustando o paletó. — Não foi sua irmã. Ainda.
Rosa guardou o broche no bolso, junto à bala única de seu revólver .38.
Naquela noite, seguiu o sinal do chip até o Porto 22. Entre contêineres enferrujados, viu Vinicius negociando armas com homens de uniforme. Um traidor entre os “Irmãos”. Sorriu. Traidores eram frágeis – bastava um empurrão certo. No dia seguinte, um áudio vazou nas caixas de som das lojas de celular: a voz de Vinicius combinando entregas ilegais. Quando os Soldados apareceram – homens de boné e botinas, sempre sem rosto -, ele sumiu como fumaça. Na manhã seguinte, um sapato manchado de vermelho foi deixado na calçada. Ninguém comentou. Na Helvétia, silêncio era sobrevivência.
Mas os “Irmãos” não perdoavam. Três barracas foram queimadas, incluindo a de Dona Marisa, a anciã que plantava jasmim em latas de tinta. Na parede, um aviso em vermelho: “O FOGO PURGA. A OBEDIÊNCIA TAMBÉM.” As mulheres se reuniram em silêncio. Marisa, com as mãos enrugadas segurando um balde de água suja, regou as flores carbonizadas.
— Água apaga incêndio — disse, olhando para Rosa. — E rega o que eles não veem.
Uma a uma, as mulheres repetiram o gesto. Naquela semana, broches de arame surgiram como ervas daninhas: na barraca de trocas, na oficina de Renata, até na torre abandonada onde os “Irmãos” vigiavam. Cada broche trazia um bilhete: “Para a próxima”.
Rosa modificou seu negócio. Sob os relógios parados, escondeu mapas de rotas de fuga e envelopes com nomes de mulheres desaparecidas. Quando Renata perguntou por quê, ela mostrou o broche preso em seu vestido:
— Porque, na Helvétia, até o arame farpado floresce.
Anos depois, quando os “Irmãos” caíram – uns diziam que foi a polícia, outros, uma guerra entre Padrinhos -, Rosa encontrou uma rosa de aço em sua porta. Dentro, um bilhete sem nome: “Segredos voam mais alto que balas.” Naquela tarde, enquanto Renata ria com o filho no colo, Rosa olhou para o céu. A torre dos “Irmãos” era apenas ruína, e os jasmins de Dona Marisa, agora altos como árvores, tingiam o ar com um perfume que ninguém podia controlar.
Na Helvétia, a noite se dissipou e finalmente deu lugar ao amanhecer. E as mulheres, como sempre, já estavam de pé.